quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Edição de Manuais Escolares

 Caros colegas e professor

Obrigado pela atenção que me deram na quinta-feira quando quis partilhar convosco a minha experiência como autor de manuais escolares.

Não comecei a apresentação como queria, trazia tudo muito ordenado dentro da cabeça, mas vocês são (nós somos) um público muito intimidante. Professor Zink, como diria o Ali G, RESTECP.

No domingo estarei a apresentar a gala de encerramento do modesto festival literário de Alcobaça, o Books & Movies (eu sei, o nome é parolo, mas tenho convites para quem quiser assistir, inclui concerto, documentário e vou entrevistar brevemente o Gonçalo M Tavares), e não conto estar tão enervado no palco do cineteatro como estive na quinta-feira.

Enfim, lá acabei por desembuchar o que tinha para partilhar convosco. Deixo-vos aqui os tópicos mais relevantes sobre o tema e alguns que não abordei.

É verdade que tenho pudor em partilhar o meu trabalho mais pessoal em contextos que não se prestam especificamente a isso, sou um mau vendedor do meu trabalho. No entanto, posso assegurar-vos que a meia dúzia de vezes em que o espírito de vendedor descarado desceu sobre mim tive bons resultados. Tenho poucas histórias que mereçam ser partilhadas e todas elas têm em comum um certo arrojo ou atrevimento. Por exemplo, quando publiquei a minha primeira fotografia num jornal nacional (DN) como consequência de ter entrado pela redação a dentro (ou adentro? preciso de um editor, estou sem internet) com um rolo fotográfico na mão e após ter sido a única testemunha armada com câmara que assistiu a um banho de sangue provocado pela polícia de intervenção (com direito a receber alguns sopapos).

Por isso, lição aprendida, afinal é para isso que ando na escola, preparai-vos para a chegada do chato; tenciono massacrar-vos com os meus livros à primeira, segunda e terceira oportunidade.

Quanto aos tópicos:

1 - Chegada à editora

Entrei na editora por convite. Apesar disso, a porta apenas se entreabriu, tive de prestar provas.


2 - documentos/constrangimentos

Recebemos um estudo de mercado que deveria nortear o processo; uma empresa caríssima escarafunchou as cabeças dos decisores (professores que irão decidir a escolha de manuais) e produziu uma receita para o sucesso onde indicou os fatores críticos do sucesso (eu, que também já escarafunchei cabeças, principalmente a minha, devo dizer que foi cada cavadela, minhoca, cada tiro cada melro, mas ao contrário. Mais sobre isto na conclusão)


3 - Análise da concorrência

Foi-nos pedido que analisássemos os manuais com maior quota de mercado (4), os dissecássemos, comparássemos, e propuséssemos um conceito novo de manual.  Assim fizemos, apresentámos e fomos convidados a ficar. Boa.


4 - definição das características do projeto

Aperfeiçoámos o conceito, sempre condicionados pelas possibilidades financeiras da editora, os limites dos livros estão muitas vezes no dinheiro que se está disposto a gastar na sua conceção, desenvolvimento e produção.

Ficou decidido que a coleção teria as características que puderam ver com as pontas dos vossos próprios dedos.


5 - Elaboração do índice

O índice, ou plano, é o coração do trabalho. É neste singelo documento, sempre alterável ao longo do processo, que definimos a estrutura do livro e onde o começamos a imaginar.


6 - Elaboração de capítulos de exemplo

Começámos (os autores) a produzir original, um capítulo de cada disciplina, para ser enviado aos debuxadores. Ali definimos as necessidades de criação de ícones, caixinhas, cabeçalhos, separadores, etc., para que eles os concretizem.


7 - envio para os debuxadores

É pelo editor designado para a nossa equipa de autores que tudo passa. Nunca conheci ilustradores nem paginadores, o trabalho original era entregue ao editor que, depois de organizar tudo, distribuía pela equipa para, mais tarde, fazer o processo inverso no nosso sentido.


8 - discussão do projeto gráfico

Aprovado o projeto proposto pela equipa gráfica, desatámos a produzir original, armados com os programas das disciplinas numa mão, as metodologias na outra e exemplos das melhores práticas na outra. (eu sei, mas são mesmo necessárias três)


9 - Criação de original

A criação de original é um trabalho a tempo inteiro, a equipa vive dentro das casas uns dos outros (figurativamente) e passa horas ao telefone e no email. Tudo se discute, compara, propõe. Nas longas discussões ganha quem tem melhores argumentos. Racionalidade acima de tudo, não há "opiniões", há estudos, exemplos, livros onde se esconde a resposta. Não, não é literatura.

Além de definir a estrutura das páginas e a as sequências de aprendizagem, tudo tudo passa pelos autores, o que não estiver definido regressa sob a forma de um disparate, os paginadores não tomam decisões. Também temos de descrever as ilustrações e gráficos de que iremos precisar.


10 - Envio de original aos bochechos

Cada capítulo terminado e revisto pelos pares segue para a editora, para os paginadores, e continuamos a produzir restante original. Uma máquina.


11 - Receção e revisão de provas

Vão capítulos de original, regressam provas. Agora é altura de cortar e colar. Literalmente. Estamos a produzir objetos de papel, é em papel que se entende e trabalha melhor. Podemos, nesta fase, escangalhar o índice e as páginas. Conteúdos que afinal não couberam nos lugares onde pensámos que coubessem têm de ser refeitos ou então há que inventar novas páginas para o enfiar, encurta daqui, empurra para ali, sempre duas a duas, para não criar distorções na estrutura par/ímpar do livro.


12 - Nova receção de segundas provas, nova revisão

Começam a chegar segundas provas. Aqui, já não se pode alterar muito, tempo é dinheiro, principalmente o tempo dos paginadores. Se houver incongruências entre imagem e texto, muda-se o texto que é mais barato. As gralhas começam a espreitar por todos os cantos e a "lupa" é a ferramenta de eleição. Se houver terceiras provas, alguém é despedido. E foi. Não apenas por esta questão.


13 - Projeto terminado

Fim! Os livros estão lindos, eu comprei uma TV nova e outras coisinhas. No horizonte estão as apresentações aos decisores: os professores.


14 - Promoção: autores nos hotéis (sem glamour) e representantes editoriais nas escolas

Corremos o país todo. Como éramos quatro, dividimo-nos pelas pequenas cidade e aparecíamos juntos nas apresentações das grandes. O Porto é uma nação. Ao longo do ano, os representantes editoriais tinham feito as suas falinhas mansas junto dos professores e agora recebiam-nos num lindo hotel, com pequeno buffet, onde poderiam usufruir de uma apresentação muito científica sobre as vantagens na adoção daqueles manuais. Os próprios autores (figura mítica) fariam a apresentação. Foi nesta altura que comecei a barbear-me.

Cada professor ganha uma coleção de livros apenas por estar presente. Se adotarem as coleções, ser-lhes-á oferecido (às escolas, não existem presentes individuais) materiais pedagógicos. Aqui está uma das chaves do processo: as editoras ricas oferecem muito e muito bom, as pobres pouco e foleiro. Quais acham que serão as mais escolhidas?


15 - adoções

Cada adoção é uma festa para a editora, uma sensação boa para os autores, sensação de dever cumprido e mais uns trocos na carteira. Cada adoção dura seis anos, seis anos de rendimento garantido, na medida do sucesso dos livros. Os autores mais adotados vivem muito muito bem. A nossa equipa conseguiu safar-se bem, além do salário que recebemos, recebemos todos os marços uma quantia que permitia olhar para o resto do ano com um pequeno sorriso no rosto . No entanto, para a editora o projeto não terá compensado, o investimento ainda foi grande. Sei quanto foi, mas não digo.

16 - o que funcionou mal?

Na minha opinião, foi descurado o aspeto do design. Investiu-se pouco. Os professores também compram com os olhos. Também não foi possível combater as editoras maiores, mesmo dentro do mesmo grupo (numa lógica concorrencial interna muito estranha, tudo para tirar quota de mercado aos outros grupos), com as suas ofertas caríssimas às escolas em caso de adoção. Os professores gostam de ser fiéis às grandes editoras com provas dadas. De tal forma que estas editoras mais pequena vingam em grupos disciplinares tradicionalmente menos conservadores, como Artes Visuais e Filosofia, por exemplo.

Por agora é tudo, talvez volte aqui para reler e editar. Obrigado a todos e bom fim-de-semana

Nuno V

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  A Greta . Ainda não fui lá, embora nem seja longe de onde moro.