Para uma pequena bio, ver aqui. Em 10 de Abril de 2020 (a data é importante), o João Morales publicou este texto no Público.
Testemunho de um TI com baleia ao fundo
Chamem-me João.
Sou trabalhador independente (TI), realidade
laboral que, com a pandemia, ganhou alguma visibilidade, pela
necessidade de alertar para as disparidades que nos encurralam, apesar de
colocarmos igual empenho, profissionalismo e dedicação fiscal ao de qualquer
outro trabalhador que tenha um patrão, um contrato, um rendimento assegurado
quando a facturação atinge o zero. A natureza dos rendimentos de um TI oscila
muito – num mês (ou mesmo num trimestre) pode ser de milhares de euros, noutro
pode ser nulo.
Vamos por partes. Sou jornalista. Fiz o meu
estágio no Diário de Notícias, em 1993. Em Janeiro de 1997, entrei para
os quadros do vespertino A Capital. Fui fazendo o meu percurso na
profissão, crescendo nela, até assumir a direcção da revista mensal Os Meus
Livros, no final de 2004, até 2012. Ou seja, de 1993 a 2012 fiz, única e
exclusivamente, jornalismo, passando pelos diferentes escalões profissionais,
de estagiário a director.
Com o fecho definitivo da revista, em 2012, num
meio profissional completamente distinto daquele em que me formei, não
conseguindo colocação numa redacção, tinha dois caminhos. Evitando render-me a
um emprego despersonalizado cuja parca remuneração seria acompanhada por uma
óbvia frustração, optei por me aventurar como TI, não apenas como jornalista,
mas encontrando nos ensinamentos que uma profissão com essa grandeza transporta
fórmulas para conjugar comunicação e cultura. Como diriam alguns gestores, fiz
um spin-off da minha actividade.
Nestes oito anos, em paralelo com algumas
colaborações na imprensa escrita, criei ciclos com escritores (como faço há
anos com a autarquia de Santiago do Cacém, e fiz durante dois anos e meio na
Livraria Almedina); entrevistas de vida ao vivo (durante três anos, com a
autarquia de Almada); moderei inúmeras conversas em festivais literários (Ovar,
Chaves, Sabrosa…) e ciclos diversos (como o Com Todas as Letras, na Sociedade
Portuguesa de Autores); desenhei formatos para levar a BD ou a poesia a
crianças e jovens (em bibliotecas e escolas); concebi o projecto Literatura
Língua Comum, para o Programa Escolhas; levei “25 Músicas para o 25 de Abril” a
bibliotecas e escolas; dinamizei formação sobre aspectos menos comerciais da
História da Música, integrei colectivos que juntam a palavra dita e a música
(em torno de Marquês de Sade, Jorge Luis Borges, Fernando Pessoa ou Miguel Torga).
Alguém que durante três meses passa um recibo de 400 euros não sobrevive
nos três seguintes com um terço disso
Destaco, claro, o festival Livros a Oeste, organizado pela Câmara Municipal
da Lourinhã desde 2012, para o qual faço a programação (manhãs, tardes e noites)
e moderação das mesas. Este ano, seria de 12 a 18 de Maio, por isso, o pico de
adrenalina que costuma ser essa semana para toda a equipa será em 2020
substituído pela chegada do pico da pandemia, a crer em algumas previsões.
Olhando para todos estes projectos, por vezes,
penso: jornalista? Divulgador? Artista? Programador? Dinamizador? Empreendedor?
Uma coisa é certa: TI. Tudo a recibos verdes. E tudo isto impossível de levar a
cabo neste momento.
O medo da incerteza a cada mês e a procura
constante de novos clientes (new business, como dizem na Economia). O
salto sem rede. Um TI não tem qualquer vínculo a quem o contrata e, para poder
receber um subsídio de desemprego, tem de ter mais de metade do seu rendimento
proveniente de um mesmo cliente. É fácil de entender a raridade da situação
(pensem num electricista, num canalizador, no senhor que chamamos para pintar a
sala ou arranjar o esquentador).
A primeira frase deste artigo não é inocente;
alguns terão reconhecido o início de Moby Dick, a odisseia do Capitão
Ahab, navegando enlouquecido atrás da baleia branca que lhe levou a perna. Para
que não nos afundemos na voracidade de ultrapassar esta conjuntura, é preciso
olhar para os TI com clareza e entender que alguém que durante três meses passa
um recibo de 400 euros não sobrevive nos três seguintes com um terço disso,
depois de a baleia Covid lhe ter mastigado ambas as pernas. Como diria o grande
Mário de Carvalho, era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto…
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