segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Rodinhas

 Quando sabemos andar de bicicleta, não precisamos de rodinhas a auxiliarem - e a evitarem a queda. Aas crianças pequenas precisam de rodinhas. Andar de bicicleta, parecendo fácil, não é: geralmente, quanto mais devagar mais seguro. Numa bicicleta, demasiado devagar e desequibramo-nos. 

As rodinhas podem ser entendidas como auxiliares excessivos. Às crianças dão a sensação de que se estão a conseguir equilibrar, quando na verdade estão a ser amparadas. A um adulto, dão a sensação de que está a chegar sozinho à conclusão certa, quando está a ser levado ao colo.

Aqui e aqui, exemplos de rodinhas com o som dos filmes: de como modificam e explicam a cena. E de como essa «explicação é, de facto, um modificador com um efeito manipulador.

Aqui e aqui em pior ainda, com os meus ídolos Bruce Lee e Chuck Norris.

Os textos usam vários elementos para nos ajudar a lê-los. Podem ir do muito subtil ao demasiado explícito. Repito: todos os textos dão pistas de como desejam ser lidos, só que uns murmuram e outros berram. 

Bom Halloween

 


Tradução do poema "Cheers" de Raymond Carver

Boa tarde, colegas e professor!

Venho aqui apresentar a minha proposta de tradução do poema "Cheers" de Raymond Carver que nos foi apresentado na aula passada. Gostava de saber as vossas opiniões e se há algum aspeto que mudariam na minha tradução. 

Bom feriado e resto de boa semana!

Eunice Fernandes


À Nossa


Vodca seguida de café. Cada manhã

penduro o letreiro na porta:

HORA DE ALMOÇO


Mas ninguém liga; os meus amigos

vêm o letreiro e

de vez em quando deixam pequenos bilhetes,

ou então ligam - "Sai e vem brincar,

Ray-mond."


Uma vez o meu filho, aquele patife,

esgueirou-se e deixou-me um ovo colorido,

e uma bengala.

Acho que bebeu um pouco da minha vodca,

E na semana passada a minha esposa deixou-me 

uma lata de sopa de carne de vaca 

e uma caixa de lágrimas.

Ela também bebeu um pouco da minha vodca,

acho eu,

depois partiu apressada num carro estranho

com um homem desconhecido.

Eles não entendem; estou bem,

bem onde estou, pois a qualquer momento

eu serei, eu serei, eu serei...


Pretendo gastar todo o tempo deste 

mundo,

considerar tudo, até milagres,

estando, mesmo assim, sempre alerta, cada vez

mais cuidadoso, mais atento,

àqueles que pecariam contra mim,

àqueles que roubariam vodca,

àqueles que me magoariam.

sábado, 29 de outubro de 2022

Dilemas do acordo ortográfico

 Caros colegas e professor, 

Na última aula de Teoria da Edição refletimos acerca do acordo ortográfico e, por ironia do destino, encontrei hoje um vídeo que está relacionado com isso mesmo. Achei pertinente partilhar o link convosco para podermos debater este exemplo em específico: https://ensina.rtp.pt/artigo/segundo-o-novo-acordo-como-se-escrevem-as-areas-do-saber-com-minuscula-ou-maiuscula-inicial/

Antecipando a minha opinião, acho curioso que o acordo ortográfico dê tanta importância à nossa liberdade de escolha. Desde que tenhamos uma sensibilidade estética, podemos continuar a ser os melhores amigos da língua portuguesa sem sentir medo de falhar. 

Um bom fim-de-semana a todos :) 

Mariana Félix

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

Edição de Manuais Escolares

 Caros colegas e professor

Obrigado pela atenção que me deram na quinta-feira quando quis partilhar convosco a minha experiência como autor de manuais escolares.

Não comecei a apresentação como queria, trazia tudo muito ordenado dentro da cabeça, mas vocês são (nós somos) um público muito intimidante. Professor Zink, como diria o Ali G, RESTECP.

No domingo estarei a apresentar a gala de encerramento do modesto festival literário de Alcobaça, o Books & Movies (eu sei, o nome é parolo, mas tenho convites para quem quiser assistir, inclui concerto, documentário e vou entrevistar brevemente o Gonçalo M Tavares), e não conto estar tão enervado no palco do cineteatro como estive na quinta-feira.

Enfim, lá acabei por desembuchar o que tinha para partilhar convosco. Deixo-vos aqui os tópicos mais relevantes sobre o tema e alguns que não abordei.

É verdade que tenho pudor em partilhar o meu trabalho mais pessoal em contextos que não se prestam especificamente a isso, sou um mau vendedor do meu trabalho. No entanto, posso assegurar-vos que a meia dúzia de vezes em que o espírito de vendedor descarado desceu sobre mim tive bons resultados. Tenho poucas histórias que mereçam ser partilhadas e todas elas têm em comum um certo arrojo ou atrevimento. Por exemplo, quando publiquei a minha primeira fotografia num jornal nacional (DN) como consequência de ter entrado pela redação a dentro (ou adentro? preciso de um editor, estou sem internet) com um rolo fotográfico na mão e após ter sido a única testemunha armada com câmara que assistiu a um banho de sangue provocado pela polícia de intervenção (com direito a receber alguns sopapos).

Por isso, lição aprendida, afinal é para isso que ando na escola, preparai-vos para a chegada do chato; tenciono massacrar-vos com os meus livros à primeira, segunda e terceira oportunidade.

Quanto aos tópicos:

1 - Chegada à editora

Entrei na editora por convite. Apesar disso, a porta apenas se entreabriu, tive de prestar provas.


2 - documentos/constrangimentos

Recebemos um estudo de mercado que deveria nortear o processo; uma empresa caríssima escarafunchou as cabeças dos decisores (professores que irão decidir a escolha de manuais) e produziu uma receita para o sucesso onde indicou os fatores críticos do sucesso (eu, que também já escarafunchei cabeças, principalmente a minha, devo dizer que foi cada cavadela, minhoca, cada tiro cada melro, mas ao contrário. Mais sobre isto na conclusão)


3 - Análise da concorrência

Foi-nos pedido que analisássemos os manuais com maior quota de mercado (4), os dissecássemos, comparássemos, e propuséssemos um conceito novo de manual.  Assim fizemos, apresentámos e fomos convidados a ficar. Boa.


4 - definição das características do projeto

Aperfeiçoámos o conceito, sempre condicionados pelas possibilidades financeiras da editora, os limites dos livros estão muitas vezes no dinheiro que se está disposto a gastar na sua conceção, desenvolvimento e produção.

Ficou decidido que a coleção teria as características que puderam ver com as pontas dos vossos próprios dedos.


5 - Elaboração do índice

O índice, ou plano, é o coração do trabalho. É neste singelo documento, sempre alterável ao longo do processo, que definimos a estrutura do livro e onde o começamos a imaginar.


6 - Elaboração de capítulos de exemplo

Começámos (os autores) a produzir original, um capítulo de cada disciplina, para ser enviado aos debuxadores. Ali definimos as necessidades de criação de ícones, caixinhas, cabeçalhos, separadores, etc., para que eles os concretizem.


7 - envio para os debuxadores

É pelo editor designado para a nossa equipa de autores que tudo passa. Nunca conheci ilustradores nem paginadores, o trabalho original era entregue ao editor que, depois de organizar tudo, distribuía pela equipa para, mais tarde, fazer o processo inverso no nosso sentido.


8 - discussão do projeto gráfico

Aprovado o projeto proposto pela equipa gráfica, desatámos a produzir original, armados com os programas das disciplinas numa mão, as metodologias na outra e exemplos das melhores práticas na outra. (eu sei, mas são mesmo necessárias três)


9 - Criação de original

A criação de original é um trabalho a tempo inteiro, a equipa vive dentro das casas uns dos outros (figurativamente) e passa horas ao telefone e no email. Tudo se discute, compara, propõe. Nas longas discussões ganha quem tem melhores argumentos. Racionalidade acima de tudo, não há "opiniões", há estudos, exemplos, livros onde se esconde a resposta. Não, não é literatura.

Além de definir a estrutura das páginas e a as sequências de aprendizagem, tudo tudo passa pelos autores, o que não estiver definido regressa sob a forma de um disparate, os paginadores não tomam decisões. Também temos de descrever as ilustrações e gráficos de que iremos precisar.


10 - Envio de original aos bochechos

Cada capítulo terminado e revisto pelos pares segue para a editora, para os paginadores, e continuamos a produzir restante original. Uma máquina.


11 - Receção e revisão de provas

Vão capítulos de original, regressam provas. Agora é altura de cortar e colar. Literalmente. Estamos a produzir objetos de papel, é em papel que se entende e trabalha melhor. Podemos, nesta fase, escangalhar o índice e as páginas. Conteúdos que afinal não couberam nos lugares onde pensámos que coubessem têm de ser refeitos ou então há que inventar novas páginas para o enfiar, encurta daqui, empurra para ali, sempre duas a duas, para não criar distorções na estrutura par/ímpar do livro.


12 - Nova receção de segundas provas, nova revisão

Começam a chegar segundas provas. Aqui, já não se pode alterar muito, tempo é dinheiro, principalmente o tempo dos paginadores. Se houver incongruências entre imagem e texto, muda-se o texto que é mais barato. As gralhas começam a espreitar por todos os cantos e a "lupa" é a ferramenta de eleição. Se houver terceiras provas, alguém é despedido. E foi. Não apenas por esta questão.


13 - Projeto terminado

Fim! Os livros estão lindos, eu comprei uma TV nova e outras coisinhas. No horizonte estão as apresentações aos decisores: os professores.


14 - Promoção: autores nos hotéis (sem glamour) e representantes editoriais nas escolas

Corremos o país todo. Como éramos quatro, dividimo-nos pelas pequenas cidade e aparecíamos juntos nas apresentações das grandes. O Porto é uma nação. Ao longo do ano, os representantes editoriais tinham feito as suas falinhas mansas junto dos professores e agora recebiam-nos num lindo hotel, com pequeno buffet, onde poderiam usufruir de uma apresentação muito científica sobre as vantagens na adoção daqueles manuais. Os próprios autores (figura mítica) fariam a apresentação. Foi nesta altura que comecei a barbear-me.

Cada professor ganha uma coleção de livros apenas por estar presente. Se adotarem as coleções, ser-lhes-á oferecido (às escolas, não existem presentes individuais) materiais pedagógicos. Aqui está uma das chaves do processo: as editoras ricas oferecem muito e muito bom, as pobres pouco e foleiro. Quais acham que serão as mais escolhidas?


15 - adoções

Cada adoção é uma festa para a editora, uma sensação boa para os autores, sensação de dever cumprido e mais uns trocos na carteira. Cada adoção dura seis anos, seis anos de rendimento garantido, na medida do sucesso dos livros. Os autores mais adotados vivem muito muito bem. A nossa equipa conseguiu safar-se bem, além do salário que recebemos, recebemos todos os marços uma quantia que permitia olhar para o resto do ano com um pequeno sorriso no rosto . No entanto, para a editora o projeto não terá compensado, o investimento ainda foi grande. Sei quanto foi, mas não digo.

16 - o que funcionou mal?

Na minha opinião, foi descurado o aspeto do design. Investiu-se pouco. Os professores também compram com os olhos. Também não foi possível combater as editoras maiores, mesmo dentro do mesmo grupo (numa lógica concorrencial interna muito estranha, tudo para tirar quota de mercado aos outros grupos), com as suas ofertas caríssimas às escolas em caso de adoção. Os professores gostam de ser fiéis às grandes editoras com provas dadas. De tal forma que estas editoras mais pequena vingam em grupos disciplinares tradicionalmente menos conservadores, como Artes Visuais e Filosofia, por exemplo.

Por agora é tudo, talvez volte aqui para reler e editar. Obrigado a todos e bom fim-de-semana

Nuno V

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Uma tentativa de dividir o setor editorial

Caras e caros colegas e professor,


Na última aula, um dos tópicos era pensar as partes do setor editorial. Não sei se contemplo o enunciado da atividade, mas gostava de partilhar convosco as minhas ideias até agora.

Nascimento: criação do documento original
Adolescência: elaboração e preparação do original (lançamento)
Adulto: produção e comercialização → reprodutibilidade a custos marginais do documento original
Velhice: esquecimento ou cânone


Agora, com um pouco de graça, ilustração e minimalismo:

Primeiro nascemos (o livro nasce). Há uma ideia, uma intenção, uma vontade (ou obrigatoriedade em casos de casamentos profissionais). Então, se escreve. Há aqui só a mãe e o bebé - o escritor e o texto.

Depois, amadurecemos um pouco e queremos abrir as asas e expandir - a adolescência. O texto precisa conhecer novas pessoas, enrolar-se com outras intimidades, contactos com revisores e editores/as: é o momento de tentativa e erro. É preciso ganhar forma.

Se houver algum acerto, então há o lançamento na vida adulta e certa estabilidade. Adequação. Produção e comercialização do livro.

Na velhice, morremos: ou somos esquecidos e deixados a pegar pó no fundo da estante, ou nos tornamos um clássico (se não universal, somente para aqueles que nos leram e realmente gostaram de nós).




Mariana Neves Silveira



sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Sumário (um tipo de) da aula 5 (20/10)

1. Nuno e os vendedores agressivos 

Tivemos uma magnífica apresentação pelo Nuno de um tipo de edição altamente lucrativo e que, ao contrário da literatura, implica fiscalizações e hologações vários: o negócio do livro educativo. O sonho de Karl Valentin quando perguntou se o teatro não poderia ser obrigatório. 

Obrigado ao Nuno. Se ele quiser, fará neste blog um sumário dos pontos centrais da sua comunicação.

2. O espaço nobre devia ser para o pobre, como nas tevês

Falámos de como a equipa pode queimar lugares que seriam melhor aproveitados se dirigidos para fora, não para dentro. Há quem goste de pregar aos convertidos - e assim enche salas - mas parece-me que falha o alvo. 

As anedotas (verdadeiras) de pessoas importantes ocuparem lugares que podiam estar para agentes de divulgação ou apreciação mais pertinentes: o caso dos lugares nas filas da frente guardados para patronos que nunca vão (contaram-me que assim foi na Casa da Música no Porto), o caso do diálogo real (até certo ponto) em Frankfurt 1997que tive com o (grande) escritor Mário de Carvalho: 

«Rui, vens ver o Zé?» (Subtexto: a conferência principal de Cardoso Pires na microinstalação de Portugal, num pátio.

«Não.»

«Não gostas do Zé?!» (Subtexto: como podes? julgava que eras só jovem, não inteiramente estúpido.)

«Gosto. Mas a sala é tão pequena, que quero deixar o lugar para um tradutor sueco.» (subtexto: Admiro-o imenso. É o meu escritor contemporâneo favorito. Por isso mesmo, sacrifico-me e não vou lá ver, embora ser visto - os pares do reino sorrindo todos uns para os outros, a ocupar o cubo cubículo todo - me pudesse trazer vantagens.

José Cardoso Pires era a figura de destaque na comitiva portuguesa. Durante quarenta anos fora o Escritor. Em 1982, o seu romance Balada da Praia dos Cães ganhou o prémio da APE, batendo Memorial do Convento de José Saramago. Qual deles é melhor? Não sei. Mas estava na cara que o júri se inclinaria emocionalmente para o Zé, não aquele outro Zé, na época visto como inadequado intruso.

3. A dinâmina de vendas 

O Nuno não trouxe os seus livros que, suspeito, para ele são mesmo os seus livros. Com pudor, achou inadequado. Mas todos os momentos são bons para fazer um sales pitch, ter um gesto de promoção

Pergunta: quando, como e onde se faz uma ação de promoção?

Resposta da Catarina: num lançamento, num encontro, numa livraria...

Resposta do Cristiano: Quando se encontra um jornalista. 

Ambas estão certas. Mas a resposta certa é: sempre. Ou melhor: sempre que houver uma oportunidade

Por vezes, pormo-nos a vender um produto pode ser inconveniente. Vou buscar uma moça moça a casa e, quando me apresenta a mãe, começar a vender-lhe um relógio talvez não seja uma boa ideia. 

Por outro lado, a revolução dos tupperwares nos anos 60 começou quando, nos Estados Unidos, pacatas donas de casa se tornaram vendedoras, à hora do chá e dos bolinhos, junto das amigas.  

Outra conversa com a Catarina: Quem deve ir nestas deslocações culturais, tipo a que fiz a Ancara? 

Dei uma lista de nomes, a Catarina escolheu. Mas com que critérios? Não se pode dizer que seja objetivo. Usamos o gosto, esperemos que educado.

4. Afinar a comunicação

4.1. Ontem no início da aula pus uma canção chamada Please don't go e escrevi no quadro: Aula em homenagem a Liz Truss. A canção alguns conhecem de uma nova série da Netflix sobre uma figura muito diferente do grande leitor Hannibal Lecter. Liz Truss era a notícia do dia: ao fim de sete semanas deixou de ser primeira-ministra. Quem conhece ambos os referentes, teria um certo tipo de prazer estético. O resto ficaria à nora. 

Não se trata de ignorância, apenas de ter os referentes. 

4.2. A importância do follow up - o lembrete, o dar seguimento, o acompanhar a mensagem até ao seu destino final - nunca é demasiado sublinhada. Muitas coisas falham devido às consequências que o império espanho descobriu á sua custa: Se obedece pero no se cumple, diz-se que sim, vou já fazer, mas depois não se faz. Nem sempre é por incompetência. Dei exemplos com tipógrafos e responsáveis pela distribuição. 

Se eu falar com um colega finlandês e ele não entender nada, a falha de comunicação pode não ser minha nem dele nem de qualquer ruído. Posso simplesmente estar a usar o código certo para outros interlocutores mas o errado para ele. 

4.1 (sim, de novo). Hoje, no Facebook, vi isto da Ryanair:

Bem esgalhado. Deem um aumento à rapaziada do Marketing & Comunicação. E, sobretudo, bom sentido timing. 

 Por falar em timing, depois há azares destes, mais comuns do que julgamos: 



5. Masterclass de Tony Montana

«First you get the money...» 

O mundo editorial não está fora do poder. É um sistema semi-autónomo mas, cada vez mais, interdependente. Os dois autores portugueses mais vendidos são omnipresentes na televisão e nos jornais. E por que motivo o único que poderia ser profissional não larga o ouço diário que tem na RTP? 

Talvez por uma razão semelhante à que faz com que a Coca-Cola continue a gastar milhões em publicididade, embora seja a marca mais reconhecida no mundo.

Muitos jornalistas pensavam que sobem na vida e na hierarquia social ao abandonar os jornais onde trabalham para se dedicarem a algo mais nobre, ser escritores. Geralmente passam de cavalo para burro. Perdem o espaço publicitário e de poder, viram frágeis e descobrem - como acontece aos ricos que perdem a fortuna - que afinal os amigos só o eram enquanto eles tinham interesse

Quando descobrem isso, correm para o jornal a implorar uma coluna, nem que seja uma crónica semanal. Nem sempre conseguem. E descobrem que, se estiverem fora da empresa, não é assim tão bem paga. 

6. O contrato do desenhador

De todas as entradas do programa, esta é a mais misteriosa, creio. Mas é um segredo de Polichinelo. Gosto de recorrer a estes filmes, porque acredito no poder da arte de sintetizar ideias complexas de forma simples. 

O filme de Peter Greenway com o mesmo nome é uma história de enganos: no auge do barroco, o protagonista é um homem de muitos talentos. Um sedutor, um bonitão, um famoso amante, um libertino cheio de autoconfiança que, embora não seja nobre, ascendeu por si só. Em contrapartida, os homens da casa que encontra são nobres pretensiosos, com perucas ridículas e cobertos de maquilhagem. No contrato, o protagonista consegue uma pequena fortuna pelos desenhos que vai fazer da casa senhorial, além de incluir o dormir com a esposa do proprietário. Isso, todavia, não lhe chega. Nos dias seguintes e, sobretudo, nas noites, marcha tudo. 

Até que uma noite ele é arrastado para o jardim. Ele ainda pensa que o marido enganado está furioso. Descobre que afinal o enganado era ele. Não foi chamado pelos seus dotes artísticos, apenas como animal de cobrição. 

8. Crianças, não comprem drogas

Isso leva-nos para o último ponto da aula. Em O Amor Acontece, Bill é uma estrela pop decadente com um sentimento de humor bem maroto. E parte a loiça numa entrevista ao vivo numa qualquer MTV. O conselho que dá - «Tornem-se uma estrela pop e dar-vo-las-ão de graça!» - é certeiro. 

Álvaro Magalhães é um pacato escritor de literatura infantil com quase cem livros publicados ao longo de quarenta anos de carreira. Mas não pode competir com Madonna, que nunca tinha escrito um livro mas o seu vendeu milhões e foi traduzido num zilião de línguas, nem com Bark Obama...  

Uma pessoa famosa tem sempre vantagens. Se escrever em inglês (o novo centro do mundo cultural desde os anos 80) ainda mais. Agora, os grandes chefes são o Gordon Ramsay, a Nigella. Lobo Antunes, eterno candidato ao Nobel (e merecedor, na minha opinião) ficou todo contente por aparecer no programa do americano  Anthony Bourdain. 

Se o mais nobre da literatura é trabalhar a língua, fazer com ela coisas que não eram possíveis noutras, quanto mais um escritor ou poeta trabalhar a língua mais problemas vai colocar à tradução. Aí o tradutor vai ter de fazer escolhas e sacrificar peças: o cavalo ou o bispo? O conteúdo ou a forma? A coisa complica quando com Hjelsmlev aprendemos que a forma tem conteúdo, o conteúdo tem forma, não são compartimentos estanques. Pet Shop Boys é um exemplo. 

Ora, como vivemos num tempo em que ser traduzido dá points, e escritores mundo fora não escrevem para seu povo (que muitas vezes nem lê), o ditado Tradutore, traditore passa a ser Autore, traditore

Ele é o escritor de Zanzibar que, na verdade, dá aulas em Bristol há décadas. Ele é o escritor que, agora que tem alguma internacionalização, cada vez mais facilita a vida ao tradutor (se conscientemente ou não, pouco importa), ele é o escritor que insistia nas minúsculas até descobrir que isso lhe interditava a Alemanha... O inglês virou o centro - científico, literário, etc. - de distribuição. A italiana Elena Ferrante chegou ao mundo através da tradução para novaiorquês. Em Portugal, lemos livros japoneses traduzidos do inglês. A poesia de uma moça de 22 anos que fez o poema de louvor na tomada de posse de Joe Biden percorre mundo. Em março de 2021, o poema de Amanda Gorman estava traduzido (em livro, com letras grandonas) em dezassete línguas. E até é notícia pelos escândalos de tradução. Calculo que hoje esteja em quarenta, ou mais. Antes, segundo consta, a jovem lera poemas seus em se~sessões pequenas, numa delas estava a esposa do futuro presidente, gostou, precisavam de alguém, ela lembrou-se da moça. O resto é History. 

Sophia ou Herberto Hélder não tiveram tanta sorte. Clarice Lispector só recentemente foi traduzida para inglês, tendo sido um sucesso da crítica mais que das vendas, até porque não pode fazer campanhas de promoção. 

"See? They got the woman."

 

 

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

 Mordo Mia — A Serventia da Casa

Lúcia J. Francisco


“(...) e partilhou este poema comigo, que vai estar no próximo disco. Escreveu-o depois daquele tarado me ter apalpado o rabo à saída do metro. 


Piropos

Mas quem é que não gosta de um bom elogio? 

Aquele suspiro malandro e inaudito atrás da orelha — o agradável baloiço lobular. 

Tormenta irresistível dum qualquer vento desdentado. Que arrepio! 

Qual ASMR qual carapuça.                                            

Passe passe menina, passe




Nem fanfic nem diário. Nem revista nem livro de artista. É o delírio prolongado de uma jovem fanática pela banda lisboeta. Trata-se de um pequeno fio de navalha, em que, dum lado, habita a produção poética, prosaica e gráfica do líder dos Mordo Mia, e do outro, a vertiginosa fantasia da autora, com textos, posters e imagens inéditas do grupo, bem como trocas de correspondência, dissecações literárias e reflexões sobre as ideias de idolatria, narcisismo e pertença social.



Lúcia J. Francisco é uma autora emergente, licenciada em Línguas, Literaturas e Culturas, que publica agora a sua primeira obra, “Mordo Mia — A Serventia da Casa”, enquanto termina o seu mestrado em Mitos Contemporâneos. 


domingo, 16 de outubro de 2022

6.4. Marketing

Na promoção do livro, devemos fazer cartazes ou televisão? Rádio ou podcast? Twitter ou Facebook? Instagram ou traseiras de autocarros? Recorrer a Influencers ou opinion-makers? Enviar livros para críticos ou pagar anúncios em jornais? 

(O parágrafo em cima tem duas falácias. Pista: falámos disso na aula anterior.)

Um video ilustrativo aqui

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

PEDRO PÁRAMO

 Compartilho um exercício de texto "publicitário" para a contracapa do que seria uma nova edição do livro Pedro Páramo, do escritor mexicano Juan Rulfo.


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PEDRO PÁRAMO

Juan Rulfo


Jorge Luís Borges, Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes, Octavio Paz, Günter Grass e Susan Sontag.

Todos eles elogiaram este livro, ainda que não tenham percebido absolutamente nada daquilo que leram.

E tu? Estás à espera de quê para poderes adicionar o teu nome à lista?


"Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo."


"Toda vez que eu entendo menos, eu gostaria de voltar para donde vim."


"Esta é a minha morte. […] Desde que não seja uma nova noite."


***

A Bíblia

Aqui fica a minha sugestão de contracapa para uma obra razoavelmente conhecida.
Nuno Valente

Aula 4: adequação, falsas questões, falácias e pausas significativas

Como é a aula 4, vamos tratar do ponto 4. Ma se fosse o ponto 7.2, teríamos aqui um vídeo bem engraçado e certeiro. 

Exercício para a próxima aula: escolha cinco capas que acha boas e cinco que acha más. 

Um editor é uma alcoviteira a matchmaker, uma casamenteira. Alguém cuja profissão é marcar encontros, prestar um date service. Há um texto que procura um leitor, e há um leitor certo para aquele texto. Um livro de poesia procura poucos 'leitores certos', um romance de aeroporto procura um milhão de leitores.

Agora dá-se o caso de editores desastrosos que falham sempre no casamento. As capas erradas, as tiragens erradas, a paginação errada, a tradução errada, a campanha errada...

Um exemplo cómico e fácil é o dos amadores que, no Youtube, colocam um diaporama de imagens bonitas a acompanhar uma canção. Como é a título gracioso não critiquemos muito, mas são um bom meio de percebermos como a inadequação pode ser desastrosa.

Por outro lado, haverá quem goste...

Este caso aqui - de uma canção de Chico Buarque - é engraçado.



A canção é sobre a aceitação da diferença, a velha história de sacrifício, oportunismo e ingratidão, bem como a diferença entre moralismo hipócrita e integridade individual.Faz parte da Ópera do Bom Malandro, uma peça de Chico a partir da Ópera dos Três Vinténs de Brecht e Kurt Weil.

Infelizmente, o editor do vídeo não achou assim. Mas, felizmente para nós, ajuda-nos a compreender o princípio da adequação.



O face:






segunda-feira, 10 de outubro de 2022

O PLÁGIO, SEMPRE O PLÁGIO

Uma das coisas mais perversas num plágio é ser manhoso pois, com sorte, o plagiador pode fingir com sucesso que é apenas um acidente. Nos transportes públicos acontece muito, com os carteiristas: quando topamos que nos estão a meter a mão no bolso fazem sempre um ar inocente. «Foi sem querer, ó amigo.»


E os desculpadores dos plágios, que pelos vistos abundam nesta chafarica, mais os próprios plagiadores, depois sugerem sibilinos: «Toda a gente rouba, amigo.»

Esta do «toda a gente rouba» é a mais bera das tretas. É que terraplana tudo: um miúdo que surripia uma chiclete passa a ser igual ao escroque que abafa as economias a milhares de emigrantes.

A mim já aconteceu um par de vezes: fazer um comentário que acho espirituoso e, depois, descobrir (ser-me chamado à atenção) que alguém chegou lá uma hora antes.

Por isso mesmo o plágio – quando é mesmo plágio – é de um oportunismo sórdido. De facto, as coincidências existem! Só que estas, ao contrário dos plágios, caracterizam-se por serem involuntárias.

Por exemplo, há assuntos que pedem respostas inspiradas bastante próximas. Quando foi do ataque ao Charlie Hebdo, muitos cartoonistas mundo fora fizeram um desenho onde mostravam que a pena era mais forte que a espada, ou troçavam dos terroristas retratando-os em pânico com um desenho.

Não se plagiaram. Ocorreu-lhes, perante um mesmo problema, uma resposta parecida.

Fernando Pessoa escreveu, em Lisboa, que era outro. Décadas depois, em Nova Iorque, Woody Allen escreveu que gostaria de ser outro. Antes, Rimbaud escrevera que «eu é um outro». São variantes à volta do mesmo. São jogos lógicos. Tal como as posições do Kamasutra, se as pessoas tiverem tempo nas mãos em qualquer parte do mundo chegam lá, porque a combinatória erótica entre dois corpos é como o cubo de Rubik – só que com mais graça.

Até nos livros. É comum terem ideias ou fórmulas próximas. O soez é quando um faz corta-e-cola do outro. O plagiador aposta na nossa ignorância, mas ele sabe que copiou. Sabe que está a reclamar um mérito que não é seu.

Não tem mal que o carteiro de Pablo Neruda use, com a autorização deste, poemas de Neruda para impressionar a namorada. Um bocadinho mais chato seria se fosse ele, todo lampeiro, a ir receber o Nobel e o respectivo cheque.

Num teste de Matemática, não tem mal se os alunos chegarem ao mesmo resultado. Só que, no meio dos que chegaram lá pela própria cabeça, há sempre um sonsinho que espreita para o lado.

Há anos, um fulano copiou descaradamente um ensaio meu. Passagens inteiras. Não fiz um escândalo, estas manchas não devem ficar para sempre, mas comuniquei a um membro do dito grémio, para que tratassem interinamente do assunto. Ficaram em pânico: não queriam queimar as mãos com o berbicacho. Eu que escrevesse um texto a queixar-me. Isto depois de eu ter feito o que me cabia: enviara passagens lado a lado para compararem.

Por acaso descobri o plágio porque, num jornal online, vinha em destaque uma citação desse senhor. Eu achei-a tão linda e tão fofinha, com uma melopeia tão maneirinha, que murmurei: «Esta parece minha.» E era.

Há aqui um pormenor com graça: um tipo que há décadas me tem um pó dos diabos escreveu (eu guardo estas coisas) que «finalmente» alguém tinha escrito uma coisa de jeito sobre o Vilhena. Como o que ele elogiou era meu (mas fê-lo por não saber que era meu), espero um dia ter oportunidade para lhe agradecer.

E os que acham que os plágios não têm importância são uns finórios. Se vivêssemos numa comunidade onde não houvesse rivalidades, prémios, benefícios vários, a autoria poderia diluir-se. Mas imaginem que, à custa do vosso trabalho, alguém vos fica com tudo. E vos esbulha e fica com o vosso emprego e, quando vocês protestam, são postos na rua e tratados como lixo.

Ao menos o Cyrano de Bergerac, na peça homónima, ofereceu os seus versos e emprestou voluntariamente a sua voz ao moço que com ele disputava o coração da amada. Ainda assim, lixou-se.

Já agora, o homem que me plagiou o dito ensaio (é de trinta e tal anos) tem até às 24h de quinta-feira para me enviar cinco mil euros.

(Estou a brincar, a chantagem é um vício ainda mais triste.)



domingo, 9 de outubro de 2022

sábado, 8 de outubro de 2022

Moral tribal e boas práticas

Diz no FB Nelson Zagalo:

«Um cronista do Público (Vítor Belanciano) é apanhado a cometer plágio — copia frases inteiras de uma crónica do El País. A leitora (Joana Fillol Guimarães Lopes) que apanhou o plágio comunicou diretamente à direção do jornal, ao autor, e ao provedor. E o que faz a direção do jornal Público? Ao fim de uma semana coloca um aviso na crónica dizendo que a crónica enferma "da repetição integral" de texto de outrém. 


«Ou seja, o Plágio no Público passou a chamar-se Repetição.


«Nem uma palavra sobre plágio. Nem uma palavra sobre o autor do plágio. Nem uma palavra sobre a posição do jornal. Escudando-se no Provedor que escreveu um texto sobre o assunto no qual se limita a repetir as palavras da leitora que identificou o plágio sem mais. Mais. O cronista em questão não é alheio a estes problemas de plágio, já houve acusações anteriores.

«Entretanto hoje, passadas várias semanas, o cronista continua a publicar textos no mesmo jornal.

«É caso para dizer, só mesmo em Portugal.

«ATUALIZAÇÃO: o Público resolveu agora mudar totalmente a apresentação do artigo, etiquetá-lo no título com Plágio, e fazer toda uma explanação do que foi ou não plagiado.

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«Texto com plágio e pseudo-alerta do jornal: https://www.publico.pt/2022/09/18/opiniao/opiniao/sociedade-avaliacao-continua-2020974

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«Texto plagiado: https://elpais.com/ideas/2022-07-27/la-sociedad-conspira-para-minar-nuestra-autoestima.html

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«Texto do provedor: https://www.publico.pt/2022/10/01/opiniao/opiniao/plagio-2022462

.» Fecha aspas

Texto da leitora que detetou o plágio, relatando toda a interação com a direção do jornal e o provedor: https://www.facebook.com/joana.g.lopes/posts/pfbid02a19k3UNcKrByVQVSgdMuzhE2PBcncvJyzn58wTdYksuMoPYmXNzDDMf3R3qJGGX2l

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Ilustração: Mark Airs, https://markairs.com/

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

Aula 3: tópicos

Meter o pé. Endogamia. Roda dentada: muitas profissões comunicantes (desde revisor a tradutor, de escritor fantasma a spin doctor ou diretor de comunicação do Sporting). Cunhas ou networking? «Tu és o teu cartão de visita.» 

Cinco dedos: foto, bio, sinopse, trechos, elogios. Ou etc:  ou nada. Mas a matriz de base é esta.

TPC: uma contracapa. Ver livros concretos, têm sempre mais imaginação que nós: «Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que em toda a tua filosofia» (Hamlet, acto 1, cena 5). 

O bom casamenteiro. Nunca ter flatulência antes do casamento. Encher chouriços. A importância do espaço vazio: Eugénio de Andrade. O caso da capa de Lídia Jorge.

A Ted Talk de Chip Kidd, para quem quiser rever 

O caso do plágio abafado merece uma entrada só sua.




terça-feira, 4 de outubro de 2022

Fragmentos de um discurso amoroso (um verbete)

Fragmentos de um discurso amoroso é o Annie Hall de Roland Barthes, do tempo em que as ideias ainda não vinham todas da América. Barthes escreve sobre o amor e diz: sou um filósofo mas também um linguista mas também um professor de literatura mas também um escritor mas também um tipo que gosta muito de cinema mas também alguém que ama e tem histórias passadas e, se Deus quiser, futuras. E como sou essas pessoas todas tenho de comentar por elas. O livro é um fragmento composto de fragmentos porque não há totalidade nem ambição de lá chegar. Tenta ser um dicionário incompleto de um mapa de lugares amorosos (o beijo, a sala de cinema, o banco de jardim, as nossas músicas, a primeira zanga, os «não posso viver sem ti», os «Destruíste a minha vida!!!») e é um fascinante emaranhado de notas de rodapé. O meu exemplar, de 1981, tem ainda uma outra nota de rodapé: os comentários que fui fazendo à margem, ora anuindo («Bolas, é mesmo assim») ora discordando com veemência («O menino Roland tá parvo!»). É capaz de ser o meu bem mais precioso, a seguir ao pedaço do nariz da esfinge que me venderam no Cairo. 

Uma livraria curiosa

  A Greta . Ainda não fui lá, embora nem seja longe de onde moro.